sábado, 6 de março de 2010

O cenário cultural - uma visão crítica do texto "Um e Outro", de Lima Barreto.

Se você leu o artigo "O que são 'serviços'?", viu que, entre as características que distinguem as prestações de serviços, constam a inseparabilidade e a variabilidade. Também leu a informação sobre como elas ocorrem. 
Durante o período em que participei do curso de Gestão em Marketing oferecido pela Fundação Getúlio Vargas (FGV), foi proposto um teste de interpretação de texto. O texto em questão era um trecho da obra literária "Um e Outro", de Lima Barreto (*). Segundo informações do curso, o escritor Afonso Henriques de Lima Barreto nasceu e faleceu na cidade do Rio de Janeiro em 1881 e 1922, escreveu romances, contos, crônicas, iniciou um curso de engenharia mas não o completou e foi funcionário público federal - trabalhou para o Ministério da Guerra. Entre seus romances mais conhecidos constam "Os Bruzundangas", "Triste Fim de Policarpo Quaresma", etc. Pelo texto que me foi apresentado, "Um e Outro" revela uma posição machista do autor, talvez devido às determinações sociais da época em que ele vivia. Mas é interessante observarmos no texto algumas situações que realmente me fazem lembrar aspectos do marketing.

O amante e o carro

No texto apresentado pelo curso, a mulher, personagem principal, estabelece associações entre seu amante e o carro que este dirigia, destacando a importância que ela dá ao carro como elemento para sua relação amorosa. Ideologias machistas ou não à parte, o texto evidencia como os reflexos de identificação influenciam a imagem de um produto e mostra como ocorria, na época em que o romance foi escrito, a relação entre o produto e a marca. 
Na visão da mulher, isto é, da personagem do romance, o motorista - ou, como se dizia naquela época, "chauffeur" ("motorista" em francês) - do "Seu" Pope (que foi seu amante antes do motorista) não era como um ser humano comum. A minha opinião, neste caso, é de que esse pensamento se justifica porque se tratava de uma época em que o automóvel ainda era uma invenção recente, quem tivesse um era considerado muito rico, e mulheres dirigindo um daqueles veículos era simplesmente algo "impensável", absolutamente fora de qualquer cogitação. Além disso, o carro era uma máquina que desenvolvia velocidade, por ser uma novidade sempre atraía as atenções das pessoas nas ruas e seguia em frente como se fosse algo superior aos transeuntes, que estavam a pé, mas era dominado pelo tal "chauffeur". Portanto, ela, a mulher, que nem podia pensar em dirigir um carro, via naquele homem capaz de manter aquela maravilha sob seu comando uma espécie de deus, um ser poderoso. 
Diz o texto que ela chegou a ter a intenção de comprar um presente para o "chauffeur". "Ela o via como se o homem e o carro fossem uma só coisa, algo indivisível", escreveu o autor, mas o triunfo maior, na visão da mulher, era do motorista, não do carro, pois este era apenas comandado por ele. Porém, diz o autor, "quando ela abraçava o homem, não era de fato por ele que ela se sentia atraída, e sim pela beleza e pelo vigor do carro que a fazia sonhar". 
Percebam o detalhe que exponho a seguir. De acordo com o texto do romance, antes a mulher amava "Seu" Pope, o proprietário do carro. Mas o proprietário do carro não o dirigia; logo, ela passou a "amar" o motorista, pois este tinha o poder de domínio do carro que a fascinava tanto. Mas torno a frisar que a obra literária foi escrita antes de 1922, quando seu autor faleceu. Se fosse uma obra escrita recentemente, diríamos, como eu frisei no início deste artigo, que seria extremamente machista, já que vivemos numa época em que as mulheres exercem profissões e cargos tão importantes quanto os homens e é difícil conhecer uma que não tenha ou não dirija seu próprio carro, ou pelo menos o do pai ou de outra pessoa da família. Portanto, não há mais razão para elas desejarem homens só porque eles tem carros ou os dirigem. 
Concluo, pois, que as mulheres dos anos em que Lima Barreto viveu não desejavam os homens porque eles dominavam os carros, e sim porque eles dominavam o que a sociedade da época não permitia que elas dominassem. Ao mesmo tempo, também concluo que as mulheres como a personagem de "Um e Outro" não desejavam uma relação com motoristas porque eles dominavam os carros, e sim porque elas tinham o poder de dominar aqueles homens que dominavam aquelas máquinas. 
De qualquer forma, resta o fato de que, entre a mulher e o homem, está o pivô da história: o carro, que é o personagem principal de fato. Portanto, toda essa discussão se transforma num excelente trabalho de marketing para promover o produto automóvel. 

(*) Não é o mesmo Lima Barreto famoso como cineasta que recebeu a "Palma de Ouro" pela produção de "O Cangaceiro" - atualmente considerado um clássico do cinema brasileiro - em 1953. Ambos se tornaram mais conhecidos como "Lima Barreto", mas o  nome completo do produtor do filme é Víctor de Lima Barreto.


No próximo artigo: "Logística em marketing"

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